segunda-feira, abril 16, 2007

A Suposta Existência

Como é o lugar quando ninguém passa por ele?
Existem as coisas
sem ser vistas?

O interior do apartamento desabitado,
a pinça esquecida na gaveta,
os eucaliptos à noite no caminho
três vezes deserto,
a formiga sob a terra no domingo,
os mortos, um minuto
depois de sepultados,
nós, sozinhos
no quarto sem espelho?
Que fazem, que são
as coisas não testadas como coisas,
minerais não descobertos - e algum dia
o serão?

Estrela não pensada,
palavra rascunhada no papel
que nunca ninguém leu?
Existe, existe o mundo
apenas pelo olhar
que o cria e lhe confere
espacialidade?

Concretitude das coisas: falácia
de olho enganador, ouvido falso,
mão que brinca de pegar o não
e pegando-o concede-lhe
a ilusão de forma
e, ilusão maior, a de sentido?

Ou tudo vige
planturosamente, à revelia
de nossa judicial inquirição
e esta apenas existe consentida
pelos elementos inquiridos?
Será tudo talvez hipermercado
de possíveis e impossíveis possibilíssimos
que geram minha fantasia de consciência
enquanto
exercito a mentira de passear
mas passeado sou pelo passeio,
que é o sumo real, a divertir-se
com esta bruma-sonho de sentir-me
e fruir peripécias de passagem?

Eis se delineia
espantosa batalha entre
o ser inventado
e o mundo inventor.
Sou ficção rebelada
contra a mente Universal
e tento construir-me
de novo a cada instante, a cada cólica,
na faina de traçar
meu início só meu
e distender um arco de vontade
para cobrir todo o depósito
de circunstantes coisas soberanas.

A guerra sem mercê, indefinida
prossegue,
feita de negação, armas de dúvida,
táticas a se voltarem contra mim,
teima interrogante de saber
se existe o inimigo, se existimos
ou somos todos uma hipótese
de luta ao sol do dia curto em que lutamos.

De A Paixão Medida, 1980

Carlos Drummond de Andrade


Mia said...

Vi relação entre mundo particular (o do papel não lido, do lugar nunca visto, e todas as coisas que são primas, no sentido de serem divididas apenas por elas mesmas e por um, sendo esse as próprias) e o mundo real, que tem sua particularidade mostrada aos outros que dentro dessa, a partir dessa, a tornam diferente, por suas interpretações. Não tem como comentar Drummond, tem como pensar Drummond, e é o que tento, há tempos, sem sucesso, mas com persistência e amor por fazê-lo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Vi relação entre mundo particular (o do papel não lido, do lugar nunca visto, e todas as coisas que são primas, no sentido de serem divididas apenas por elas mesmas e por um, sendo esse as próprias) e o mundo real, que tem sua particularidade mostrada aos outros que dentro dessa, a partir dessa, a tornam diferente, por suas interpretações.

Não tem como comentar Drummond, tem como pensar Drummond, e é o que tento, há tempos, sem sucesso, mas com persistência e amor por fazê-lo.